2.5.10

O Demônio, Eu e Você


"I can't help being restless
When everything's so tasteless
And all the colours seem to have faded away"

Living Life - Daniel Johnston


Esse post era pra ser originalmente uma resenha ao documentário que vi recentemente, The Devil and Daniel Johnston (2005)

"Mas Praxedes, por que tu só falas de filmes atrasados? Por que não falas de uma bossas modernas, do hype?" me pergunta Sardaukar (nome verdadeiro, Mascarenhas) todo dia de seu birô ao lado do meu na repartição.

- Mascarenhas - digo eu com muita pachorra -, não escrevo, primeiro, porque tu não és meu patrão e, segundo, porque eu só escrevo sobre as coisas do coração.

Ao que ele me chama de 'viadinho' e vai tomar o décimo cafezinho do dia.

Brutalidades dos colegas de trabalho à parte, a história de Daniel Johnston me comoveu muito. Se você não tem um chinelo kenner velho no lugar do coração, leia mais a seguir.



Daniel Johnston nasceu no começo da década de sessenta e ainda adolescente começou a produzir de maneira caótica desenhos, músicas e pequenos filmes caseiros. Em 1985 recebeu atenção de um programa da MTV sobre um pequeno movimento musical alternativo de sua cidade natal, Austin. Na época, Daniel distribuía fitas cassete com sua composições a deus e o mundo e acabou participando de um pequeno especial da emissora americana, a glória para ele. O de lascar é que o compositor começava justamente nesse período a mostrar sinais graves de um transtorno mental incipiente que o acompanhava desde a adolescência.

A partir daí, Johnston nunca se recuperou completamente da doença, que no filme é mencionada como transtorno bipolar mas, segundo um grande especialista que conheço, trata-se na verdade de um caso de transtorno esquizoafetivo. Esse transtorno é uma espécie de meio-do-caminho entre a esquizofrenia e o transtorno afetivo bipolar: leva sintomas característicos das doenças do humor como euforia, aceleração do pensamento e delírios de grandeza, mas tem curso menos benigno e deteriorante, característico da esquizofrenia. Daniel sofria constantemente (e desconfio que ainda hoje sofre) com delírios paranóides relacionados ao demônio e tem o hábito infantil de desenhar personagens de HQs.

O artista foi internado várias vezes pois se recusava a seguir o tratamento com medicação. Mesmo depois de aceitar tratar-se, nunca voltou "ao normal". Hoje vive com os pais e continua excursionando, mas seu sucesso hoje depende mais de uma atitude indulgente dos fãs do que do seu talento performático.

A música de Johnston é crua e caótica e atinge o ouvinte justamente por se comunicar diretamente com algo do nosso inconsciente, ao mesmo tempo feroz e ingênuo. Há algo que cutuca os demônios em nós, que inquieta e emociona; como o reencontro inesperado com algo há muito esquecido e latente, algo que se considera "desconhecido". Escute uma composição típica, gravada no porão da casa dos pais (como foi concebida a maior parte de sua obra):


Há alguma coisa na voz e na estrutura que lembra Bob Dylan dos primeiros discos. Se achou estranho e intragável, veja o que sobra quando um bom intérprete organiza o caos melódico:


Outro exemplo aqui e aqui. Sim, Mascarenhas, o Wilco gravou Daniel Johnston. Eles, Beck, Pearl Jam, Tom Waits, Flaming Lips, Teenage Fanclub, Yo La Tengo e mais uma porrada de gente (a lista toda aqui)

O artista é artista porque sofre ou sofre porque é artista? Fiquei me perguntando isso depois de tomar pé da obra de Johntson. No lo sé. A sua vida e suas músicas e desenhos são expressões muito pungentes de uma enorme dor mental. É como se seu inconsciente estivesse a céu aberto - para usar uma frase que os lacanianos adoram - com todas as coisas de dentro voando completamente livres para fora. O próprio artista costuma desenhar seu auto-retrato como um sujeito com a cabeça sem o tampo.

Pronto, já escrevi o que meu horário de cafezinho permite. Procurem o documentário (trailer) e escutem boas versões das músicas no disco The Late Grate Daniel Johntson. Não vou por os links pra baixar aqui porque não coaduno com os outros contraventores deste blogue.

4 comentários:

  1. Mentira, não põe os links pq é um preguiçoso e também um sincofanta!

    p.s.: segunda, não esquece de preparar aquele relatório que te pedi por memorando!

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  2. Este filme é muito bom, comovente e perturbador, ao mesmo tempo!

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  3. Só não vá me dizer que também se identificou com essa história.

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